
Uma reportagem publicada pelo Diário de Notícias, um jornal português, nesta quarta-feira 26 de abril de 2023, relata o ativismo político e cívico de Luiz Carlos da Rocha, o Rochinha, e Manoel Caetano, o Maneco, que acompanharam o agora presidente Luiz Inácio Lula Lula da Silva durante 580 dias de prisão.
O artigo destaca as questões raciais ainda presentes no Brasil, apesar da abolição da escravatura em 1888, e cita o pai de Rochinha, Espedito Oliveira da Rocha, escultor e ativista do Partido Comunista que lutou contra o racismo e a injustiça social no Brasil ao longo de sua vida.
A reportagem também destaca a ligação pessoal que Rochinha e Maneco sentiam com Lula da Silva, pois seu comportamento e maneirismos os lembravam do pai de Luiz Carlos. Enfim, o texto da publicação portuguesa não deixa dúvida de que depois de Lula e Chico Buarque são os primos advogados que mais fazem sucesso em Portugal.
Abaixo, leia a íntegra da reportagem publicada hoje no Diário de Notícias.
Com Lula e Chico Buarque, dois primos com um legado político
RESISTÊNCIA. Durante os 580 dias em que Lula esteve preso em Curitiba, Luiz Carlos da Rocha e Manoel Caetano revezavam-se nas visitas diárias. Foi a sua forma de honrar o legado do escultor e resistente antifascista e antirracista Espedito Oliveira da Rocha, familiar de ambos.
São primos direitos e não se lembram do momento em que formaram uma consciência política. Para Luiz Carlos da Rocha e Manoel Caetano é como se ela tivesse estado sempre lá, quase como um sinal de nascença que lhes acompanhasse o crescimento e, depois, a chegada à maturidade. Naturais de Curitiba, os dois acompanharam Lula da Silva nos 580 dias em que este esteve preso na Polícia Federal da cidade. De 7 de abril de 2018 a 8 de novembro de 2019, os dois primos revezaram-se nas visitas ao prisioneiro, movidos pela convicção política e pela admiração, mas o que acabaram por encontrar foi um sentimento de familiaridade que os desconcertou.
É Manoel Carlos que explica ao DN: “Uma das coisas que nos deixou mais à vontade na relação com Lula é o facto de ele ter um comportamento muito parecido com o do meu tio, Espedito Oliveira da Rocha. Ambos são de cidades próximas, no Estado de Pernambuco. Isso expressava-se de várias maneiras, mas a que mais me impressionou tem a ver com o facto de Lula ter sempre a sua cela arrumada e limpa. Mesmo quando o visitávamos de manhã, a cama estava feita, a sacola e a roupa estavam perfeitamente dobradas. Lembro-me que quando íamos a casa do Espedito, estava tudo impecavelmente arrumado e ordenado, mesmo nos últimos anos da sua vida.”
Espedito Oliveira da Rocha, nascido a 1 de janeiro de 1921 e falecido a 18 de novembro de 2010, foi escultor e, durante toda a sua vida (incluindo o período da ditadura militar), militante do Partido Comunista Brasileiro. Também um dos seus sete filhos, Luiz Carlos, admite ter sentido essa identificação durante as visitas feitas a Lula da Silva: “Lembro-me de um episódio, em que levámos ao presidente um pequeno televisor com entrada USB. Ele não estava a conseguir colocar a pen, mas teimou em resolver o problema sozinho, sem a nossa ajuda. O meu pai teria feito exatamente a mesma coisa”.
Luiz Carlos não deixa, no entanto, de sublinhar as diferenças: “São sobretudo ideológicas. O meu pai era um comunista de raiz e Lula é um social-democrata.”
Em Portugal, durante a visita presidencial e a entrega do Prêmio Camões a Chico Buarque, dois primos falam sobre a importância dos dilemas que se colocaram a um homem essencial na formação de ambos, Espedito, cuja vida e militância foram abordadas no livro-entrevista de Celso Araújo, Este Espedito – Escultura e Esperança. Espedito viveu uma vida longa marcada pelo combate à ditadura, mas também pela dupla condição de ter nascido negro e pobre numa sociedade persistentemente segregadora. O filho Luiz Carlos recorda com precisão os 11 anos em que o pai viveu na clandestinidade, fugindo para casa do irmão no Mato Grosso do Sul, depois de ter sido uma das figuras mais visadas pelo golpe militar em Curitiba. Com a ajuda de um amigo tabelião, Espedito criou uma nova identidade, Tibúrcio Melo, depois de conseguir várias Certidões de Nascimento em branco e carimbadas. Nos anos seguintes, executou tarefas para o partido pelo Brasil todo, fixando-se em Mato Grosso, numa fazenda adquirida pelo PCB, e tornou-se fazendeiro. Em Curitiba, foi julgado à revelia e condenado a 18 anos de prisão, voltando em 1979, no âmbito de uma amnistia proclamada pelo regime.
Espedito nunca cessou de combater o racismo, endémico na sociedade brasileira, e a sua resistência não era apenas uma questão política. Negro, neto de um escravo transportado de um ponto impreciso de África para o Brasil, Manoel Caetano recorda como, no tempo do tio, “práticas como a capoeira eram consideradas crime, a tal ponto que uma família respeitável não deixaria uma filha namorar com um jogador de capoeira. O mesmo acontecia com as religiões de origem africana, que eram muito perseguidas”. Luiz Carlos recorda como o pai, “senhor de grande autoestima, não permitia que alguém o discriminas-se abertamente por causa da raça”. Com uma percepção social apurada, Espedito procurou que “todos os filhos fossem para a Universidade porque um curso superior torná-los-ia menos permeáveis a esse racismo”.
Luiz Carlos não pensa que este racismo seja, no seu país, coisa do passado: “Temos uma arquitetura muito racista. Ainda hoje se constroem prédios com entradas à parte para empregadas domésticas. E quem diz entradas, diz elevadores, portas e banheiros separados. Como os empregados domésticos são predominantemente negros é fácil perceber que, antes de mais, é uma questão racial”. O mesmo acontece com a linguagem, diz ainda: “Quando dizemos que o Pelé era um negro de alma branca, não o estamos a elogiar. Quando o Ronaldinho Gaúcho diz que não se sente preto porque é bem tratado (fundamentalmente porque é rico) não estamos a ser igualitários. Antes pelo contrário.” Com este legado, Luiz Carlos e Manoel Caetano iniciaram cedo, ainda nos bancos da escola, a militância política e cívica. “Não poderia ser de outro modo”, admitem.
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