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O culto ao Pai e ao Filho virou culto a Bolsonaro no Espírito Santo | Reconvale Noticias


Em flagrante sobreposição de religião com política eleitoral, a Marcha para Jesus, realizada neste sábado (23) em Vitória, virou a Marcha para Jair Bolsonaro, ou melhor, a Marcha pela Reeleição do Jair. O palco do evento evangélico se converteu em palanque de campanha antecipada do atual presidente da República. Em diversos momentos, a adoração espiritual ao Senhor do cristianismo confundiu-se com adoração ao Messias (segundo nome de Bolsonaro). O que se viu foi um culto político dedicado ao convidado especial, com intensos toques de messianismo.
Em sua curta fala aos adoradores, o próprio presidente reforçou a percepção de que sua estratégia eleitoral é transformar sua campanha à reeleição em uma cruzada religiosa, investindo na retórica maniqueísta do “nós contra eles”, ou, para reproduzir seus termos exatos, da “luta do bem contra o mal”, onde o “bem” seria encarnado por ele mesmo e seus seguidores, enquanto o domínio do “mal” caberia a seus adversários – notadamente, o ex-presidente Lula (PT), seu principal oponente na disputa pelo poder central.
Se alguém ainda tinha alguma dúvida quanto a isso, Bolsonaro tratou de evidenciar que, para se reeleger, vai investir pesadamente na fidelização dos votos dos cristãos conservadores – os evangélicos, de modo particular.
Alguns momentos do ato religioso na Praça do Papa chegaram a ser curiosos, tamanha a confusão entre espiritualidade e fanatismo político consubstanciada no evento. Se um observador externo desavisado fosse jogado em frente ao palco em meio a tudo, simplesmente não saberia dizer se estava diante de um culto evangélico ou se o que estava vendo era um típico comício de campanha, ou melhor, showmício gospel.
A mistura de camadas foi tão grande que, em muitas falas do pastor que fez as vezes de mestre de cerimônias, não era possível discernir se a referência ao “senhor” era ao deus cristão (“o Senhor”) ou ao próprio Bolsonaro (“o Senhor Presidente”). Naquele contexto, o tratamento caberia aos dois!

“Viemos marchar com o S/senhor”; “Vamos glorificar o nome do S/senhor”; “O S/senhor que governa a nação”; “Vamos adorar o S/senhor, porque o rei dos reis está aqui”.

Quem efetivamente é o senhor que governa a nação e que foi adorado e glorificado pelos ali presentes?
Deus tem lado político?

A retórica de campanha de Bolsonaro, exemplificada em seus quatro minutos de discurso, intensificou essa muito distorcida noção de que o Deus dos cristãos não só é brasileiro como tem um lado político: Bolsonaro e seus seguidores são os únicos que estão do lado de Deus, logo Deus está do lado de Bolsonaro e de seus seguidores, pois são eles a encarnação do “bem”, imbuídos da missão de livrar o Brasil do “mal” (ou das “garras do inimigo”, “dos espíritos do mal”, das “portas do inferno”).

Soa presunçoso e delirante… mas o raciocínio é esse mesmo, e tais expressões realmente foram ditas por vários oradores no palco, incluindo o próprio Bolsonaro e sua esposa, Michelle.

Por esse raciocínio enviesado, cristão que é cristão só pode votar em Bolsonaro, senão não é digno de ser assim chamado.

Tanto Jair como Michelle Bolsonaro falaram do Brasil como uma “Terra Santa”, em analogia à Terra prometida por Deus ao povo de Moisés no Velho Testamento. Mas “guerra santa” é a expressão mais adequada para o que eles estão, retoricamente, propondo.


Tome-se, por exemplo, o discurso de Michelle Bolsonaro, entre a retórica bíblica e a bélica:

“Nos ajudem, irmãos! Não deixem que o espírito do mal entre na igreja santa do Senhor. Não permita. Nós declaramos que o Brasil é do Senhor. E o Senhor, do alto dos céus, está olhando para nós neste momento. Declaramos que as portas do inferno não prevalecerão contra a nossa nação. […] Eu peço, irmãos, que vocês permaneçam firmes, porque é uma batalha, sim. Não estamos lutando contra homens e mulheres. Estamos lutando contra espíritos do mal. E nós cremos que o Senhor Jesus vai vencer.”

Presidente do Fórum Evangélico Nacional de Ação Social e Política (Fenasp-ES), o pastor Romerito Oliveira puxou uma oração pelo presidente e rejubilou-se porque Deus presenteou os brasileiros com um presidente temente a Ele e que tem livrado o povo brasileiro das “garras do inimigo”:

“O Senhor nos deu o presente de termos um presidente temente a Deus e uma primeira-dama temente a Deus. O povo brasileiro tem se alegrado com o presidente que o Senhor nos deu. O povo brasileiro tem se livrado das garras do inimigo, graças a esse casal que vai conduzir esta nação para dias melhores. Vamos adorar o Senhor, porque o rei dos reis está aqui.”

Candidato ao Senado do partido de Bolsonaro e também apoiado por ele, o ex-senador Magno Malta (PL) não ficou atrás: também puxou um Pai Nosso para o presidente e alertou para a “luta do bem contra o mal”: “Ou nós, cristãos, resistimos, ou seremos atropelados!”

Uma das filhas de Magno, a cantora gospel Karla Malta, também escolheu uma retórica situada entre a religião e a guerra, dizendo que o Brasil não pode entrar pelas “portas do inferno”: “A nossa nação tem dono. Nós sabemos que as garras são fortes e que as trevas estão se levantando, mas nós estamos em posição de ataque”.

Magno Malta discursa na Marcha para Jesus. Foto: Ascom
Assim falou o presidente

E o que dizer do pronunciamento do próprio presidente?

“Todos os dias, quando me levanto, […] dobro meus joelhos, elevo o meu pensamento ao Senhor e peço que esse povo brasileiro não experimente as dores do comunismo. Peço que o nosso povo nunca perca a sua liberdade. Nunca seja proibido de exercer a sua fé. Peço também, mais do que sabedoria, peço força para resistir e coragem para decidir. Nós aos poucos vamos sabendo o que se prepara para o nosso Brasil. Por falta de conhecimento, diz a palavra, o povo pereceu. Vocês já têm conhecimento o suficiente para saber que é uma luta do bem contra o mal.”

Bolsonaro insistiu no desgastado “nós (o bem) contra eles (o mal)”; revisitou a surrada agenda de costumes que passa a anos-luz dos reais desafios do país; tornou a agitar fantasmas e inimigos imaginários; repisou o risco de implantação do comunismo no Brasil, sem precisar a sua concepção de “comunismo” (pode-se inferir que, no seu conceito, cabem tudo e todos que não sejam partidários dele); alardeou a ameaça de perda da nossa liberdade, sem esclarecer o que entende, afinal, por “liberdade”.

É raso, é superficial, é simplista, é de um maniqueísmo quase infantil, fica em algum ponto entre o paranoico e o delirante. Mas é esse o discurso de campanha de Bolsonaro. É nesse discurso que ele aposta. E é isso o que ele tem para oferecer.

Acredito que seja muito pouco para um presidente da República e que, para se reeleger, ele precisará de mais que slogans, frases feitas (“O Brasil é o país do presente”) e pregação em nome de Deus, da família, da “liberdade” e contra o “comunismo”.
Do que não se falou

Não se ouviu uma palavra sobre inflação, desemprego, retomada do crescimento econômico, geração de renda, combate à miséria e à fome, gestão da pandemia, saneamento básico, segurança pública, infraestrutura e desafios da nossa educação.

Em 2018, quase não houve debate eleitoral efetivamente. Espera-se que desta vez os candidatos à Presidência usem o período de campanha para debater de fato os problemas reais do país.
De qual liberdade ele fala?

A maneira para lá de elástica como Bolsonaro utiliza o conceito de “liberdade” merece atenção à parte. De qual liberdade, afinal, ele está falando? Quais liberdades estão realmente ameaçadas no país?

Talvez a de poder trafegar acima do limite de velocidade numa estrada sem ser flagrado por um radar; a de poder pescar em área proibida, por tratar-se de reserva natural, sem ser impedido e autuado por um fiscal ambiental; a de poder praticar o garimpo e outras atividades predatórias em reservas naturais ou indígenas; a de poder ficar sem se vacinar contra Covid-19 mesmo que isso implique em prejuízo à saúde coletiva; a de poder portar uma arma de qualquer calibre e com quantas munições quiser, em quaisquer circunstâncias; a de poder pilotar uma motocicleta em via federal sem capacete e sem correr o menor risco de ser parado e multado pela Polícia Rodoviária Federal, a menos que você seja um Genivaldo da vida.

Jair Bolsonaro atravessa a Terceira Ponte, sem capacete, à frente de uma “motociata” (23/07/2022). Foto: Ascom

Liberdade, enfim, naquele sentido hobbesiano, de poder fazer tudo o que ditam os seus impulsos primários sem nenhum freio imposto pela organização social; liberdade de permitir que suas vontades individuais prevaleçam sobre direitos coletivos e sobre o bem-estar social.

Quem pleiteia a liberdade absoluta no fundo deseja instaurar a ditadura dos desejos pessoais, para dar vazão e eles sem nenhum limite, ainda que isso prejudique e viole os direitos de terceiros. É o absolutismo do ego. Um indivíduo assim não é um cidadão de verdade. Não é capaz de viver em sociedade.

Agora, chega a ser estranho ver Jair Bolsonaro erigir-se em “defensor das liberdades”. Basta dizer que ele sempre venerou ditaduras e ditadores – não só a nossa, de 1964 a 1985, da qual o capitão é um produto e um saudosista, mas também as de outros países pelas quais no passado também demonstrou simpatia.

Sempre foi fã declarado de regimes que censuram a imprensa, as artes e a academia, perseguem críticos e opositores, cassam mandatos e direitos políticos, prendem sem culpa formada, torturam, matam, somem com os corpos e riscam suas vítimas da história oficial. E vem arvorar-se em defensor da liberdade?!?
Liberdade de culto em risco?!?

“Peço que o nosso povo nunca perca a sua liberdade. Nunca seja proibido de exercer a sua fé.” Bolsonaro disse isso numa “Marcha para Jesus” realizada na Praça do Papa, no estado do Espírito Santo. Que liberdade do culto está em risco no país?!? Creio que seguidores de outras crenças teriam mais razão para se queixar de intolerância religiosa.

Faixa pede eleição com voto impresso auditável, na Marcha para Jesus. Foto: Vitor Vogas
O cartazinho da tia é o problema?!?

Aconteceu na minha frente: perto da grade que separava os populares da comitiva do presidente, uma senhora esperava o presidente, que se aproximava. Ela segurava um cartaz onde se lia: “Cristão não vota em ladrão”. O segurança do presidente, que vinha na frente, ao ver o escrito, pediu à senhora que guardasse o cartaz, devido às restrições impostas pela legislação eleitoral. “Isso pode prejudicar o presidente”, justificou.

É sério?!? Aquele inofensivo cartazinho é o problema? Aquilo é propaganda antecipada?

O cartaz da fã do Bolsonaro falava explicitamente em “voto” (e aí o pecado mortal…). Mas foi a menor propaganda antecipada que se viu ali nesse sábado.

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