A população de Amargosa, a 119 km de Salvador, famosa pelas festas de São João, agora ganhou fama internacional – e não tem nada a ver com o período junino. Desde 2017, O município de tornou o maior abatedor de jegues do Brasil.
Na cidade funciona o Frinordeste, hoje o principal frigorífico de abate de jumentos do país. No local, cerca de 1,2 mil animais são abatidos todas as semanas para posterior exportação à China, segundo funcionários ouvidos pela BBC sob a condição de anonimato. Estima-se que o produto movimente bilhões de dólares por ano.
Uma peça de couro, por exemplo, pode ser vendida na China por até U$ 4 mil (cerca de R$ 22,6 mil). Mas o mais lucrativo nos jumentos é que, desse mesmo couro, é possivel extrair uma substância medicinal muito popular na China. Depois de morto com um tiro de ar comprimido entre os olhos, o couro do bicho é retirado, embalado em caixas e levado para a China, onde é transformado em uma gelatina que é usada para produzir o ejiao, pertencente a Tradicional Medicina Chinesa. Uma caixa de ejiao sai por R$ 750.
A carne normalmente é separada e exportada para o Vietnã. No Brasil, os valores do comércio são bem menores — jumentos são negociados por R$ 20 no sertão, e depois repassados aos chineses. Ainda de acordo com a reportagem, a cidade de Amargosa se tornou dependente de um mercado que cresce a cada ano, mesmo sob a acusação de colocar a existência do animal em risco.
Não há comprovação científica de que o ejiao funcione, mas, no país asiático, ele é utilizado para tratar diversos problemas de saúde, como menstruação irregular, anemia, insônia e até impotência sexual. Ele é consumido de várias maneiras, como em chás e bolos. No YouTube, há vídeos de programas populares da TV chinesa ensinando receitas com ejiao e prometendo ao espectador uma vida “mais saudável.”
POPULAÇÃO
A alta demanda e lucratividade fizeram com que empresários chineses mirassem o Brasil, país com uma população abundante de jegues — em 2013, havia 900 mil deles, a maior parte no Nordeste, segundo o IBGE. Hoje, de acordo com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) há por volta de 400 mil. Entre 2010 e 2014, o Brasil abateu 1 mil jumentos — já entre 2015 e 2019, foram 91,6 mil.
Mas esse número hoje é maior. Apenas em Amargosa, são 4,8 mil animais por mês — 57,6 mil por ano. Há outros dois frigoríficos com permissão para a atividade nas cidade de Simões Filho e Itapetinga, também na Bahia.
Para fabricar o produto, os animais são retirados do meio ambiente em grande volume, sem que exista uma cadeia de produção que renove o rebanho, como ocorre com o gado. Ou seja, eles são abatidos em uma velocidade maior do que a capacidade de reprodução, o que acendeu um alerta de que a população de jegues pode ser eliminada nos próximos ano no Nordeste.
Três vezes por semana, cerca de 400 jumentos chegam ao Frinordeste em caminhões fechados — 50 por veículo. Funcionários relatam que, diante do calor, de viagens de até 500 km e da condição física debilitada, animais chegam a desembarcar na empresa machucados ou até mortos.
“COMO UM CACHORRO”
“Para mim é como matar um cachorro, um bicho de estimação. A gente cresce montando jegue, e agora tem que ver jegue morrendo sem parar. É muito jegue, amigo. Muito mesmo, tem semana que são 1,2 mil. Ninguém aguenta mais ver essa situação”, diz João (nome fictício), que trabalha no frigorífico pois depende do salário para sustentar a família.
Em entrevista a BBC, ele contou que passou meses desempregado e, sem opção, aceitou um emprego. “Trabalho por que preciso, não por concordar. Mas, se fechar, como ficam as famílias aqui?”, diz.
Outro funcionário, José, também diz ter dificuldade em assistir todos os dias a tantos abates. “A gente nem sabe direito porque estão fazendo isso, o que vão fazer com eles… Muitos chegam aqui machucados, morrendo. É um animal que a gente vê desde pequeno, faz parte da nossa vida. É complicado participar disso, mas a precisão exige. Tenho filhos para criar, a situação está bem difícil”, afirma.
FISCALIZAÇÃO
Em 9 de julho deste ano, a Polícia Militar da Bahia recebeu uma denúncia: centenas de jumentos que seriam abatidos no Frinordeste estavam morrendo de fome e sede na fazenda Boa Esperança, em Itatim. Quem os encontrou foi o tenente Benjamin Pereira e Silva, comandante do pelotão da PM na cidade.
“Infelizmente a situação era pior do que imaginávamos. Eram uns 200 animais, que tinham vindo da cidade de Rodelas. Eles estavam bem debilitados, machucados, muitas fêmeas prenhas, muitas abortando. Não tinha mais capim nem água, nenhuma comida para eles. Era uma área totalmente árida. Encontramos muitos animais mortos, com urubus em cima. Não havia nenhum tipo de apoio de equipe veterinária. Levamos o gerente para a delegacia e ele foi autuado por maus-tratos”, relata o tenente à reportagem. “No dia seguinte, voltamos à fazenda e não havia mais nenhum animal. Todos foram levados para outro lugar”, diz o policial.
Não foi a primeira vez que isso aconteceu. Em 2019, centenas de jegues foram encontrados em situação parecida nas cidades de Canudos e Itapetinga, também no interior da Bahia. Nestes casos, os animais seriam destinados a outros abatedouros, não o de Amargosa.
Em Canudos, estima-se que 200 dos cerca de 1 mil jumentos encontrados morreram de inanição. Os outros estavam bastante debilitados. No local, foram encontrados dois imigrantes chineses, responsáveis por cuidar do rebanho.
“Eram dois jovens que não recebiam salário para trabalhar ali. Não falavam português, tivemos que usar o Google Tradutor”, conta Patrícia Tatemoto, PHD em biologia e pesquisadora da ONG britânica The Donkey Sanctuary, que atua na defesa do jumento contra o mercado de ejiao. “Quando os encontramos, eles não tinham comida na fazenda, estavam com fome, não tinha nem banheiro. O laudo da polícia apontou que eles estavam em trabalho análogo à escravidão.”
Os dois imigrante ainda foram autuados por maus-tratos, mas nunca mais foram vistos na região de Canudos.
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