As forças de segurança do Governo Maduro reprimiram duramente, neste sábado, as tentativas dos vizinhos da população venezuelana de Santa Elena de Uairén de se aproximar da fronteira com o Brasil para receber a ajuda humanitária destinada aos venezuelanos. Nos choques houve ao menos quatro mortos, segundo confirmaram um deputado opositor em nome da Assembleia Nacional e a ONG Foro Penal. Uma testemunha assegurou a este jornal que a cifra chegava a cinco: "Um tanque entrou no meio da população e começou a disparar”, assinalou Vilma Vázquez, arquiteta municipal, logo após chegar a Pacaraima (Brasil).
Dezenas de pessoas concentram-se na fronteira do Brasil com Venezuela. REUTERS
Vászquez chegou à cidade brasileira depois de cinco horas de caminhada. A repressão das forças de segurança contra os vizinhos de Santa Elena se deu enquanto a operação organizada no Brasil para introduzir ajuda humanitária pelo único posto de fronteira que compartilha com a Venezuela se materializou neste sábado em dois pequenos caminhões. Estavam carregados com kits médicos, arroz, feijão e leite em pó. Os veículos ficaram horas parados em uma zona de limbo, ou terra de ninguém, entre os países, sem cruzar o cordão de militares venezuelanos que bloqueava a estrada. Enquanto isso, refugiados gritavam slogans contra Nicolás Maduro e o chavismo.
Um ativista pró-Guaidó que não quis se identificar tentou evitar que o entusiasmo declinasse sob o sol inclemente do meio-dia. “Quando o segundo caminhão chegar, esperamos que desça o povo pemón (um grupo indígena venezuelano que domina a terra da fronteira). E se ao cair da noite eles não chegarem... se tivermos de passar a noite aqui, passaremos”, exclamou em voz alta ao lado do caminhão. Ele insistiu para a multidão que eram “os guardiões da esperança da Venezuela” e os instruía com slogans como “Soldado, não reprima! Estamos levando remédios! [em espanhol, Soldado, no reprima, llevamos medicina!]”. O ativista afirmou que vários milhares desses indígenas, contra os quais os soldados venezuelanos abriram fogo na véspera, iam se juntar à mobilização.
Nesse exato instante Juan Guaidó, reconhecido por dezenas de países como presidente interino da Venezuela, tuitou o que parecia uma conquista: “JÁ ENTROU o primeiro carregamento de ajuda humanitária pela nossa fronteira com o Brasil”. Não era verdade. Naquele momento a carga estava na zona de limbo (terra de ninguém) depois de ter atravessado o posto brasileiro, mas sem avançar até a barreira de militares da Venezuela. O chanceler brasileiro Ernesto Araújo, que foi a Pacaraima acompanhar a tentativa de fazer chegar a ajuda humanitária também chegou a gravar um vídeo dizendo que um primeiro caminhão brasileiro havia cruzado a fronteira em solo venezuelano, mas ele não alcançou seu objetivo.
A carga dos dois caminhões que passaram por Pacaraima representa uma parte mínima das 200 toneladas armazenadas em uma base aérea do Exército brasileiro em resposta ao pedido de Guaidó. O restante dos alimentos não pôde ser encaminhado porque seus seguidores no Brasil não conseguiram cumprir a exigência principal do Governo de Jair Bolsonaro: que todos os veículos e motoristas fossem venezuelanos. As autoridades brasileiras, muito ativas no apoio retórico a Guaidó, foram mais discretas no aspecto material. Contribuíram com uma pequena parte dos insumos que partem do seu território. A grande maioria foi doada pelos Estados Unidos.
Mas esse dispositivo não trata apenas de ajuda ou de quantidades. O ministro das Relações Exteriores do Governo ultradireitista, Ernesto Araújo, enfatizou à imprensa em Pacaraima que é “o início de um processo”. O ministro foi muito claro ao explicar que essa ajuda —além de ser um alívio para aqueles que eventualmente a receberem em uma população extremamente carente de quase tudo— tem “o significado político e simbólico de reconhecer o Governo legítimo (de Guaidó) como única autoridade na Venezuela”. Tudo com uma finalidade bastante concreta: aproveitar que se está completando um mês de sua proclamação para “reforçar a posição do presidente interino para o exercício efetivo do poder, como lhe compete”.
Nenhum dos organismos multilaterais que normalmente organizam entregas de ajuda humanitária está envolvido no dispositivo venezuelano. O diretor de operações do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Dominik Stillhart, disse há poucos dias quando perguntado sobre o assunto que “isto não é uma agência de implementação para qualquer doador, e especialmente não implementamos coisas que tenham um tom político”.
A embaixadora em Brasília designada por Guaidó, María Teresa Belandria, explicou ao lado de Araújo e de um representante da Embaixada dos Estados Unidos que foi impossível encontrar mais caminhões e motoristas venezuelanos dispostos a levar o carregamento. “Tivemos enormes dificuldades para conseguir transporte, o regime ameaçou as empresas de confiscar suas licenças, os caminhões e prendê-los” se participassem, disse Belandria.
Enquanto se aguarda a decisão do momento certo para começar e avançar, marcha a ré “para deixar claro que só levamos ajuda”, já estava decidido quem dirigiria os caminhões até a vintena de militares que bloqueavam a passagem. Um assessor do prefeito e o chefe de comunicação da vizinha cidade venezuelana de Santa Elena. Eles serão os protagonistas do momento-chave.
O decreto presidencial no qual Guaidó ordenou a abertura da fronteira com o Brasil não teve nenhum efeito no terreno. Todo o trânsito bilateral está suspenso há dois dias. De qualquer forma, o gotejamento de venezuelanos que abandonam sua pátria com uma mala continuou como de costume. A única diferença é que cruzavam a fronteira por trilhas. Luis Castro, engenheiro de 38 anos, vai ficar dois anos no Brasil com uma bolsa de estudos. Inocencio Perdomo, fotojornalista de 74 anos, e sua neta, Gabriela Aular, secretária de 18 anos, vinham de Caracas rumo à Argentina. Cada um com sua mala.
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